sábado, 16 de julho de 2011

Os meandros da realidade brasileira desafiam até a dialética

Marcos A. Pedlowski, artigo publicado no número 204 da Revista Somos Assim



     Uma das minhas tarefas como professor na Uenf é ministrar o curso de Metodologia da Pesquisa, normalmente para os alunos do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais. Apesar de sempre frisar que não estou oferecendo um curso sobre história do método ou filosofia da ciência, um dos tópicos que sempre causa certo alvoroço ocorre quando trato do método dialético e das dificuldades que cercam o seu uso na pesquisa científica. Ocorre que, ensinadas a pensar dentro de uma moldura linear desde crianças, a maioria das pessoas fica perplexa ao tentar raciocinar de uma forma que desafia a linearidade.  No esforço de explicitar a aplicação da dialética, costumo insistir em metáforas que visam demonstrar que, dentro desta lógica, não há como estabelecer molduras fragmentadoras, pois nesta forma de pensar tudo estaria interconectado, e as coisas só seriam efetivamente explicadas se colocadas dentro da totalidade em que ocorrem. No entanto, não importando o nível de esforço que eu empregue, fico sempre com a sensação de que, por uma vez mais, não consegui alcançar a clareza necessária para que os participantes do curso entendam o que seja o pensamento dialético. Convenhamos que pensar dialeticamente é desafiador, já que é mais fácil nos contentarmos com explicações lineares. Entretanto, a vida continua sempre nos trazendo problemas para os quais o pensamento linear é insuficiente. Como resultado , tendemos a não entender fatos que ocorrem por detrás de processos e que, à primeira vista, não possuem a menor relação.

      À guisa de exemplificação de um percurso dialético pela realidade, vejamos vários fatos da realidade brasileira que, em aparência, nada tem a ver entre si.  Desde 2002 cerca de 25.000 escolas foram fechadas em áreas rurais brasileiras, deixando milhares de crianças sem acesso à educação. O curioso é que essas escolas atendiam um universo que alcança em torno de 18% da população brasileira. E mais, é justamente nas áreas rurais que se encontram o maior contingente de pessoas mais pobres do Brasil, aquelas que se encontram abaixo da linha da miséria. Ainda que o fechamento destas escolas seja de responsabilidade de estados e municípios, a falta de ação do governo federal (comandado na maior parte deste tempo por Lula) o torna co-participe deste desmantelamento da rede rural de escolas.  De quebra, o programa nacional de reforma agrária foi colocado numa geladeira, o que contribuiu (segundo dados do Censo Agropecuário de 2006) para um aumento da concentração da terra no Brasil.

        Como resultado desta combinação de fatos aparentemente díspares, o que se viu foi um esvaziamento ainda maior das áreas rurais, e o avanço da aquisição de terras agrícolas por indivíduos e empresas estrangeiras, inclusive em áreas de fronteiras, o que é proibido pela Constituição Federal.  Não é que agora, em 2011, a Advocacia Geral da União (AGU) resolveu demandar um recadastramento geral das propriedades rurais agrícolas existentes no Brasil, pois a situação estaria fora de controle, gerando graves ameaças à soberania e aos interesses econômicos nacionais? O curioso é que a AGU está tomando o cuidado de adiantar que não está interessada em controlar o mercado de terras, mas apenas ter algum tipo de mecanismo de informação que permita ao Estado brasileiro conhecer o montante de terras existente nas mãos de estrangeiros. Obviamente, este cuidado visa não aborrecer os grandes latifundiários brasileiros e os seus interesses econômicos, dos quais o governo Dilma depende diretamente para manter sua base de sustentação dentro do Congresso Nacional.

      Se examinarmos melhor a conexão entre o que está acontecendo com a propriedade da terra no Brasil e o comportamento de deputados e senadores, talvez fique fácil entender o que houve na votação da reforma do Código Florestal. Para quem não se lembra, sob o argumento de proteger os interesses dos pequenos e médios produtores, a maioria dos deputados federais apoiou o relatório de Aldo Rebelo (PC do B/ SP), que incluía uma série de mudanças que já tiveram como fruto um aumento exponencial do desmatamento na Amazônia. E não é preciso nem um raciocínio dialético para inferir que foi justamente nas grandes propriedades dominadas pelas commodities agrícolas que se concentrou esta inflexão positiva na derrubada de florestas. O que ainda não se sabe, dado o descontrole cadastral dos proprietários de terras, é quantos hectares se encontram nas mãos de pessoas e corporações estrangeiras. 

        E como um irmã siamesa, o que cresceu junto com o desmatamento foi a matança de lideranças camponesas que se opunham à dizimação das florestas nacionais em nome do avanço das monoculturas agro-exportadoras.  E o que se viu de reação do governo Dilma em relação ao aumento do desmatamento e ao assassinato de lideranças? Uma reação pálida e envergonhada de quem está impotente politicamente em função das alianças que foram firmadas para garantir a continuidade do PT no poder.  E de quebra ainda tivemos, nas últimas semanas, de assistir a mais uma procissão de revelações que explicitam as relações incestuosas entre políticos e grandes empresários, as quais servem apenas para aumentar a concentração da renda e o fosso que separam ricos e pobres no Brasil. Ufa! Haja dialética!